Thursday 14 April 2011

Lendo os Evangelhos Gnósticos

Depois de VALIS e d'Os Invisíveis, tinha de ir pegar nisso. Já deve ter ouvido falar neles. Se tratam dos evangelhos desaparecidos - e em parte propositadamente pela Igreja Católica - que acabaram sendo encontrados num local em Nag Hammadi, no Egito. Não foi ao acaso que esses evangelhos foram mantidos em segredo pelo Vaticano, já que a imagem de Cristo que venderam ao mundo pode se refutar facilmente recorrendo a eles. Horselover Fat menciona partes deles em VALIS.

Comecemos. Você já deve ter ouvido falar em "O Reino de Deus", um conceito e frase frequente em sermões religiosos. Normalmente nos apresentam isso como se tratando de um local, de um lugar, de um espaço. Mas de acordo com os evangelhos gnósticos, não me parece bem isso. Vejamos essa passagem, como exemplo, do Evangelho de Tomás.

«Se aqueles que te lideram disserem 'O Reino de Deus' é no Paraíso, para lá irão os pássaros em primeiro lugar. Se eles disserem 'fica no mar', para lá nadarão primeiro os peixes. Mas o Reino de Deus habita em seu coração e em toda sua volta; quando você se conhece a si mesmo também você será conhecido!»

Essa passagem apenas questiona alguns preconceitos religiosos. Quando o narrador (Cristo) diz "Se aqueles que te lideram disserem..." ele questiona automaticamente toda a autoridade religiosa que tenta (e muitas vezes consegue) manipular e convencer as pessoas sobre noções não muito claras presentes nos evangelhos.

Essa noção de "Reino de Deus" exemplifica isso mesmo, de que as coisas podem merecer diversas interpretações - que ao dogma não interessam. A autoridade religiosa vê o "Reino de Deus" como um lugar, mas Cristo diz que ele "habita em seu coração e em toda sua volta". Isso me parece muito mais budista do que cristão. Mas convenhamos, os cristãos de ontem pareciam ser muito diferentes dos atuais.

Se o "Reino de Deus" habita em seu coração, pode ele ser antes descrito como um "estado neurolôgico" e não um espaço ou lugar?

"Quando você se conhece a si mesmo também você será conhecido!"

Na grande maioria dos evangelhos gnósticos existem chamadas de atenção de Cristo para que os homens se conheçam a si mesmos, e fazendo isso eles acabem por encontrar o tal "Reino de Deus". Da maneira como vejo isso, o "Reino de Deus" pode significar um estado de felicidade absoluta, como o "Nirvana" do budismo, e não um lugar.

Cristo continua sendo visto pela sociedade em geral como alguém que pretende(ia) trazer paz ao mundo. Mas de acordo com o que ele diz no Evangelho da Tomás, isso deve ser questionado:

«Os homens acreditam que vim ao mundo para trazer paz, mas eles não compreendem que eu vim trazer divisão na Terra; fogo, luta e conflito»

Continuo achando a primeira parte desse excerto do Evangelho de Tomás algo enigmática:

«Os seus discípulos perguntaram, "Em que dia tu te darás a conhecer a nós?" Jesus respondeu, "Quando vocês se livrarem da culpa e vergonha e rasgarem seus velhos trapos e os espezinharem como crianças»

Que quererão eles dizer com Cristo se dar a conhecer? Porque não o conheciam já eles? Ou se o conheciam, será que falavam de uma outra face, talvez apenas visível aqueles que chegassem naquele estado chamado de "Reino de Deus?" A resposta de Cristo, essa sim, parece ecoar do espírito da última frase de Os Invisíveis, ("Nossa Sentença Terminou!") e acaba desafiando a mesma igreja que promoveu Cristo como messias. Quem mais tem promovido culpa e vergonha que a religião?

Outra passagem no Evangelho de Tomás que me faz questionar se o Reino de Deus/Reino Paradisíaco não se trata do estado mental em que o ser humano se encontra após a destruição do ego. Encare essa metáfora:

«O Reino Paradisíaco é como um bravo soldado desejando matar um gigante. Ele tira sua espada em casa e a faz atravessar a parede para testar sua confiança. Depois disso, ele vai e mata o gigante»

Mas avancemos agora. Você já ouviu falar no conceito de 'pecado', não? Claro que já, organizações religiosas o usam para manipular tudo e todos, dizendo o que todos podem ou não fazer. Leis absurdas. Leis que não são dos homens. No Evangelho de Maria Madalena (sim, existe um, lá iremos mais para o final) Pedro pergunta a Cristo qual é o pecado do mundo. Eis a resposta:

«O pecado não existe realmente! São vocês que criam o pecado, quando fazeis ações como adultério, que são chamadas de pecaminosas. Por isso o Bem entra em seu coração para fazer você voltar à sua origem»

Ui que merda. Então o pecado "não existe realmente?" Não segundo Cristo, o próprio.

Ouvimos frequentemente nos Evangelhos Gnósticos Cristo alertando os homens para o auto-conhecimento e contra a ignorância como caminhos para esse "Reino de Deus":

« Vos digo que o filho do homem está dentro de todos vós! Procurem ele lá dentro! Aqueles que procuram sem cessar e seriamente acabarão por encontrá-lo. Depois saiam e proclamem a verdade do Reino àqueles com ouvidos para ouvir. Não inventem regras além dessas que vos dei. Não façam leis como os fazedores de leis fazem ou isso os deixará para trás»

Eu interpretei isso da seguinte forma: aprendam a como chegar nesse estado a que Cristo chama de "O Reino" e depois ensine aos restantes. De salientar o alerta para que seus seguidores não façam leis. Mas eles acabaram por fazer. Os dogmas se tratam disso mesmo.

Outro aspecto curioso dos Evangelhos Gnósticos passa pelo Evangelho de Maria Madalena. Ele mostra que não só Maria Madalena não se tratava de uma 'prostituta' como era aliás um discípulo de Jesus - o seu favorito. Essa visão da mulher propagandeada pela Igreja de Pedro pode ser vista na atitude do seu criador, que age sempre contra Maria Madalena de uma forma misógina:

«Pedro disse, "Ele (Cristo) falou mesmo com Maria, uma mulher, sem nosso conhecimento? Porque devemos ouvir o que ela diz? Ele a favoreceu mais do que a nós?"»

Mas Mateus adverte Pedro:

«Você sempre se enraivece rápido de mais. Te vejo agora duvidando de uma mulher tão valorosa como Maria. Quem tu pensas que és para disputar seu testemunho, como um inimigo? Se Jesus a fez justa, quem somos nós para a desonrar? Jesus a conhecia bem, por isso ele a amava mais do que a nós»


Nota final: Não me vejo como alguém religioso mas me identifico com alguma componente filosófica/mística apresentada por Jesus Cristo. A interpretação desses textos foi minha apenas e cada um poderá fazer a sua. Com minha interpretação pretendi, antes de mais, clarificar que a palavra do homem que certas organizações religiosas apresentam como seu messias me parece bem diferente daquilo que na generalidade as pessoas pertencentes a essas organizações fazem. Se a Bíblia e outros livros religiosos não fossem levados ao fanatismo talvez esse mundo estivesse bem melhor.